Temos analisado nos últimos anos a evolução da jurisprudência do CARF sobre operação comumente utilizada pelos contribuintes, em que ocorre a devolução de capital realizada pela pessoa jurídica mediante a entrega de bens a valor contábil, seguida da alienação dos bens pelos acionistas, com base nas disposições contidas no art. 22 da Lei n. 9249, de 26.12.1995, que autoriza que a pessoa jurídica opte pela devolução a valor contábil ou de mercado. A vantagem nessa operação é que, em geral, as alíquotas aplicáveis sobre o ganho de capital da pessoa jurídica são superiores às alíquotas aplicáveis na tributação da pessoa física1.
Como já observado anteriormente, a jurisprudência daquele Conselho, desde o ano de 2013, consolidou-se no sentido de que, a partir da vigência do art. 22 da Lei n. 9249, o ordenamento jurídico passou a permitir que a devolução de capital fosse feita pela pessoa jurídica mediante a entrega de bens a valor contábil ou de mercado, ficando a cargo da pessoa jurídica decidir como quer realizar a distribuição. Desse modo, respeitados os ditames da redução de capital, a pessoa jurídica estaria resguardada pela previsão contida no artigo acima transcrito, razão pela qual a redução de capital mediante entrega de bens a valor contábil, seguida da alienação dos bens pelos acionistas, tratar-se-ia de uma opção fiscal do contribuinte2, mesmo que o aproveitamento desta opção resultasse em economia tributária.
A partir de 2017, aquele Conselho começou a proferir decisões contrárias aos contribuintes, as quais, em geral, passaram a rechaçar a tese da opção fiscal e, muitas vezes, reconheceram a existência de vícios do negócio jurídico (abuso de direito, simulação etc.) e imputaram a penalidade qualificada com fundamento no parágrafo primeiro do art. 44 da Lei n. 9430, de 27.12.1996. Como exemplos, citam-se os acórdãos n. 1301-002.609, de 19.9.2017, n. 1402-002.772, de 17.10.2017, n. 1401-002.196, de 21.2.2018, e n. 1302-003.286, n. 1302-002.387 e n. 1302-002.388, todos de 12.12.2018.
Não é recomendável generalizar os casos, eis que cada situação deve ser observada de forma individualizada. A despeito disso, é inegável que houve um endurecimento da jurisprudência, o que também ocorreu no que tange a outros temas, como é o caso da amortização fiscal do ágio, com base nos art. 7º e 8º da Lei n. 9532.
Justamente nesse contexto é que foram disponibilizadas duas decisões proferidas no final do ano de 2019, uma favorável e outra desfavorável aos contribuintes. Trata-se dos acórdãos n. 9101-004.506, de 6.11.2019, proferido pela 1ª Turma da CSRF, e n. 1201-003.311, de 12.11.2019.
A situação analisada pela 1ª Turma da CSRF no acórdão n. 9101-004.506 pode ser resumida da seguinte forma:
– constituiu-se uma pessoa jurídica com três sócios, duas pessoas físicas e uma jurídica (A), a qual integralizou o capital da nova pessoa jurídica mediante cessão e conferência dos direitos relativos à titularidade e registro de determinados produtos;
– na sequência, a pessoa jurídica A transferiu para os sócios pessoas físicas, mediante redução de capital pelo valor contábil, as quotas da nova pessoa jurídica, que possuía os direitos relativos aos produtos; no mesmo ato, um sócio transfere a participação para o outro, que fica com a integralidade da participação societária na nova empresa; e
– finalmente, o sócio que detinha a integralidade da participação societária na nova sociedade aliena as quotas, tendo oferecido à tributação o ganho de capital apurado por pessoa física (alíquota de 15%).
No caso foi autuada a pessoa jurídica A, que transferiu seus ativos. Após a interposição de recurso voluntário, o CARF deu provimento ao recurso voluntário, por meio do acórdão n. 1302-002.389, de 17.10.2017, cancelando a exigência. A 1ª Turma da CSRF, em decisão colhida por maioria, deu provimento ao recurso especial interposto pela Fazenda Nacional, restabelecendo a exigência e determinando que o processo retornasse à Turma de origem para análise de temas prejudiciais, como, por exemplo, a aplicabilidade da multa qualificada.
Em resumo, entendeu-se que na situação em tela não estavam atendidos os requisitos para a redução do capital previstos no art. 173, da Lei n. 6404, restringindo-se tal dispositivo às situações em que, uma vez integralizado o capital, haja perdas irreparáveis, ou quando o capital se encontra excessivo em relação ao objeto da sociedade. Foi importante para a conclusão adotada o fato de a nova sociedade ter sido constituída, o capital ter sido integralizado pelos sócios, inclusive a pessoa jurídica A, e, logo em seguida, ter sido reduzido mediante entrega de bens às pessoas físicas. Segundo entendimento do voto condutor, teria ficado comprovado que não estavam presentes tais requisitos, pois a empresa nem sequer iniciou suas atividades e os ativos foram transferidos aos sócios pessoas físicas.
Afirmou, ainda, a decisão que \”a devolução do capital social predicada pelo art. 22 da Lei n. 9249, a valor contábil ou de mercado, passa inevitavelmente pela devida motivação da redução do capital social da pessoa jurídica. E, demonstrados os reais motivos da alteração do capital social, a devolução pode ser dar inclusive a valor contábil, possibilitando um diferimento na tributação do ganho de capital por parte do sócio retirante e que foi beneficiado pelo recebimento do investimento. Buscou-se não impor um ônus tributário em uma situação específica, sensível, no qual se depara a pessoa jurídica com a necessidade de promover uma diminuição no seu capital social. O diferimento do ganho de capital vem retirar um peso e auxiliar a preservação da pessoa jurídica.\”
Por sua vez, o acórdão n. 1201-003.311, de 12.11.2019, proferido pela 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 1ª Seção do CARF, deu provimento ao recurso voluntário do contribuinte, cancelando a exigência fiscal. No caso, após reorganização societária, a pessoa jurídica reduziu seu capital mediante entregue de participações societárias aos acionistas pessoas físicas, que posteriormente venderam essas participações.
Após analisar a operação, o voto condutor afirma categoricamente, em diversos momentos, que o contribuinte teria agido com o único intuito de obter economia fiscal, rechaçando os argumentos apresentados. No entanto, a decisão afirmou que não existe norma que autorizasse a desconsideração de um ato ou negócio jurídico, tendo em vista a não regulamentação do art. 116, parágrafo único, do CTN. Portanto, diante desse cenário jurídico, consignou que o planejamento tributário realizado dentro dos limites da legalidade somente poderá ser contestado quando evidenciada e existência de dolo, fraude ou simulação por parte do contribuinte.
Em conclusão, afirma que \”embora as apontadas alterações societárias terem como causa a venda do (…) para a (…) e terem como finalidade a incidência da tributação menos gravosa do IRPF, verifico que cada um dos atos foi praticado de acordo com as normas legais e que a operação de venda, tomada em conjunto, não contém intenção de injusto, de fraude ou de simulação, de forma que a desconsideração laborada pela fiscalização não possui suporte fático/jurídico, pelo que a exigência deve ser exonerada.\”
A conclusão exposta nessa decisão é muito importante, por reconhecer que, inexistindo eventual fraude, dolo ou simulação, ou seja, quando lícitas as operações, aspecto inconteste na presente situação, não há de ser desconsiderado o ato ou negócio jurídico. Nesse sentido, destacamos os acórdãos n. 1402-001669, de 6.5.2014, da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 1ª Seção do CARF, e n. 1302-001.610, de 3.2.2015, da 2ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF. Entretanto, tal entendimento não é majoritário, sendo que a 1ª Turma da CSRF possui entendimento em sentido diverso, ou seja, pela possibilidade de desconsideração de operações pela ausência de propósito negocial, o que foi reconhecido, por exemplo, no acórdão n. 9101-004.562, de 3.12.2019.
As decisões analisaram o tema por ângulos distintos, eis que o acórdão n. 1201-003.311, de 12.11.2019, analisou sobre o prisma da ausência de qualquer vício e, consequentemente, a validade dos atos praticados, ao passo que o acórdão n. 9101-004.506, de 6.11.2019, afirmou que não teriam sido preenchidos os requisitos do art. 173, da Lei n. 6404, relativos à redução de capital. Contudo, deve-se destacar que há um ponto de conexão entre elas que é o fato de ambas terem analisado a regularidade do ato de redução de capital. Realmente, o acórdão n. 9101-004.506 afirmou que a redução de capital, in casu, não preenchia os requisitos legais, ao passo que o acórdão n. 1201-003.311 consignou que não teria havido nenhuma irregularidade nos atos individuais praticados. Assim, ainda que tenham analisado os casos por diferentes prismas, as decisões de certa forma concordaram no que tange à importância da regularidade do ato de redução de capital.
Finalmente, deve-se ressaltar que se trata de tema que ainda será objeto de decisões do CARF, principalmente da 1ª Turma da CSRF, que já se manifestou de forma contrária também no acórdão n. 9101-004.335, de 7.8.2019. Na esfera judicial, contudo, ainda não há precedentes, de modo que, caso se consolide na CSRF o posicionamento contrário aos interesses dos contribuintes nesse tipo de organização, o tema passará a ser objeto de discussão perante o Poder Judiciário, onde interpretações de ordem subjetiva.
Por Paulo Coviello Filho
Fonte: www.decisoes.com.br
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